Detidos de Montepuez não comiam há 9 dias
A cela da morte
(Maputo) A "mt" conseguiu uma versão não governamental sobre a
macabra morte colectiva de 83 reclusos numa cadeia policial de
Montepuez, Cabo Delgado. Os detidos morreram de asfixia, como
diz o relatório médico já divulgado, mas uma coisa acelerou a
tragédia: eles não tinham o que comer desde o dia 12 de
Novembro, data em que a maioria já estava detida na cadeia do
comando policial local. A nossa fonte é um engenheiro que
trabalha na vila há mais de dois anos. Conversamos longamente
com ele, na manhã de ontem.
Neste momento, a situação na vila está calma. Mas a fonte relatou-nos um cenário de pânico no interior do distrito: dezenas de
militantes da Renamo, uns alegadamente armados, estão a
caminhar em direcção à fronteira com a Tanzania, fugindo a um
ambiente que nos foi descrito como o de uma "forte repressão
policial". E de outros locais do distrito, chegam a vila notícias
sobre uma onda de enforcamentos. "As pessoas que fogem para a
Tanzania e as que estão a enforcar-se têm medo de represálias",
contou-nos a fonte.
Os antecedentes remontam às manifestações da Renamo do dia 9
de Novembro, em que morreram 17 pessoas, entre as quais 7
agentes polícias. "Foi uma manifestação bem organizada, uma vez
que veio muita gente do interior".
Depois da chamada quinta-feira sangrenta, a Polícia iniciou uma
campanha de detenções dos envolvidos nas manifestações. A
nossa fonte disse-nos que a detenção não visava especificamente
os militantes da Renamo como tal, mas aqueles sobre quem
pesavam suspeitas de terem participado no saque a lojas e
entidades públicas. "Muitos entregaram-se voluntariamente. Aqui foi
possível identificar os culpados pois todos conhecem-se".
A recolha dos manifestantes ao calabouço deu-se até o dia 12. E
as autoridades judiciais iniciaram logo o julgamento dos detidos.
Mas, afinal, nenhum dos condenados podia transitar para a cadeia
civil pois esta "não tem condições. Está podre. Estão a tentar
arranjar". Por isso, os condenados e os não condenados
permaneceram na cela do comando da Polícia, a tal cela descrita
como tendo 7 metros por 3. "É um lugar de facto pequeno, que só
dá para três pessoas".
À altura das manifestações, a cadeia civil já estava sem
condições, e não albergava nenhum condenado normal, segundo a
nossa fonte. Este engenheiro enfatisa um facto: a Polícia não dava
comida aos homens. "Muitos dos detidos foram capturados nas
suas machambas e sem a presença da família". Nem podiam,
nesse contexto, receber comida de casa. Foram vivendo naquele
ambiente escaldante, com fome e sem ar suficiente, perdendo
forças paulatinamente.
Mas o facto de a morte ter sido colectiva, ou seja, o facto de todos
terem morrido no espaço de poucas horas, suscitou comentários
de que terá havido outros factores de peso. A nossa fonte não quer
confirmar a história da magia negra e a alegação de que, para
precipitar a morte, alguém fez introduzir na prisão fumo de motor
de viatura. "Há muitas histórias que são contadas aqui em
Montepuez. Não vale a pena dar ouvidos a isso".
O facto de Montepuez não ter condições prisionais para aprisionar
tão grande número de pessoas em simultâneo, levou a que alguns
dos militantes da Renamo, nomeadamente "os líderes da
manifestação", fossem transferidos para Pemba.
O DISTRITO ESTÁ A SER ABANDONADO
Ontem, Montepuez parou para ter uma reunião pública com o
governador José Pacheco, que acaba de regressar à província do
estrangeiro. Não conseguimos apurar o que foi debatido, mas
consta que o governador deve ter apresentado o seu "sentimento
de dor" pelos malogrados. É que "cerca de 70 % dos detidos
mortos eram pessoas conhecidas aqui na vila". Mas Montepuez
está a ser abandonado, diz a nossa fonte. Dezenas de militantes
da Renamo estão a tentar abandonar a fronteira com a Tanzania,
fugindo a eventuais represálias. "Alguns estão a ser capturados e
colocados nas prisões distritais". Ou seja, parece estar a continuar
uma onda de detenções.
Para além deste alegado abandono, a fonte relatou a existência de
enforcamentos no interior de Montepuez. Alguns enforcados,
acrescentou, estão a aparecer com mangas nos bolsos das
roupas, o que pressupõe que estejam a passar fome.
- Há fome aí?
"Não creio que seja uma coisa generalizada". O engenheiro traçou-nos um cenário de relativa normalidade alimentar. Ele, que chegou
à vila há dois anos, ido de Maputo, crê que os níveis de produção
das principais culturas - algodão, milho e amendoim - mantém-se.
Quanto à responsabilização local pela tragédia, a fonte conta que
o comandante distrital substituto encontra-se detido. Eis a
alegação: "falta de tomada de decisão". Ou seja, ele permitiu que
as tragédia acontecesse, não fez nada para impedí-la. A ausência
de uma prisão à altura tem servido de encobrimento. Na altura dos
acontecimentos, o dirigente máximo do Estado no distrito era o
director distrital da Educação. Tanto o administrador como o
comandante distrital estavam ausentes. Mortepuez, como lhe
chama Mia Couto num texto publicado nesta edição, é já um
distrito trágico. Perdeu, desde 9 de Novembro, 103 habitantes.
(Marcelo Mosse)
A opinião de Mia Couto:
MORTEPUEZ
Seja qual fôr o resultado do inquérito, uma coisa já sabemos ter
acontecido em Montepuez - o profundo desrespeito pela vida. O
tratar-se gente como gado. O deixar-se de escutar quem sofre.
Os que estavam presos na cela de Montepuez já eram antes
prisioneiros dessa lógica que levou o agente policial a olhar o
pobre cidadão anónimo como objecto pouco rentável.
Fossem homens ricos a quem se pudesse extorquir uns dinheiros
e o assunto teria sido resolvido de outra forma. Fossem
paquistaneses de qualquer nacionalidade ligados com assuntos de
droga e teriam direito a aprisionarmo-nos a nós, que somos reféns
dessa impunidade. A morte de dezenas de moçambicanos não
pode ser desligada do assassinato de Carlos Cardoso, em
Maputo. Porque Cardoso lutou por esse homem anónimo e pobre,
que não sendo visível nem da família dos poderosos, se encontra
desarmado perante a injustiça.
A morte de compatriotas nossos em Montepuez pode ter a mesma
origem de quem quer matar o nosso país: por asfixia. Por
impossibilidade de respiração da nosso sentido de humanidade.
Editorial:
CRIME DE ESTADO
As informações até agora disponíveis apontam para o mesmo
sentido: a morte colectiva em Montepuez foi resultado de uma
acção vingativa por parte da Polícia, que usou um instrumento do
Estado para apagar ódios extremados. Estamos perante mais um
daqueles hediondos actos praticados por agentes policiais, com a
cumplidade do Estado. Num caso como este, o governo tem de
tomar uma atitude firme de responsabilização dos culpados, tanto
mais não seja para dar ao mundo uma imagem, embora cada vez
mais irrealista e menos genuína, de cometimento para com os
mais elementares direitos humanos.
E a responsabilização desse acto terá de atingir os mais altos
dirigentes governamentais dessa área. Estamos a falar de
Almerinho Manhenje, o Ministro do Interior. Manhenje chegou à
Polícia num momento em que a podridão no seio da corporação
era total e a criminalidade atingira então picos jamais vistos desde
o fim do Estado socialista. A Polícia representava o que de mais
corrupto tínhamos na sociedade, encobrindo as alas
gangsterizadas que usa(va)m o crime como modo de vida, ante a
cumplicidade serena de Manuel António.
Nos primeiros meses após a sua nomeação, Manhenje trouxe um
efeito renovador: a pouco e pouco, a criminalidade reduziu e, pelo
menos em Maputo, as pessoas experimentaram uma sensanção
de quase alívio. Mas o ministro falhou numa coisa: acomodou-se
nessa ideia, afinal lunática, de que, com ele, a criminalidade tinha
reduzido. Não teve a capacidade de observar que isso podia não
ser o resultado prático da sua acção, mas o efeito simples e lógico
da troca de ministro.
As gangs esperaram para ver, para depois voltar a saquear. E
Manhenje não conseguiu prostar-se categoricamente do lado
oposto desse ímpeto criminoso que rodea ainda o nosso dia a dia.
Por isso, o ministro não serve. Pode-se argumentar que o Estado
tem poucos meios para dotar a Polícia de condições razoáveis,
mas Manhenje nunca se assumiu activamente contra a
generalização do crime.
E Montepuez só vém confirmar o laxismo do ministro, trazendo
também esta triste realidade: a de que o Estado assumiu-se,
agora, como um Estado criminoso. O Estado acaba de
assassinar, sumariamente, 83 cidadãos numa cadeia em
condições precárias. E o ministro Manhenje é o ministro do órgão
do Estado responsável por essa tragédia, pois a cela da morte é
da alçada da Polícia. É ele que deve ser responsabilizado, para o
efeito dessa responsabilização ser mais enérgico e introduzir entre
os governantes a ideia de que estão no poder para servir os
cidadãos. Só assim Joaquim Chissano poderá voltar a mostrar
algum pendor correctivo dentro do seu governo. Num momento em
que Moçambique está mergulhado numa incógnita no que diz
respeito à normalidade política, e enquanto o esperado diálogo
com Dhlakama não chega, esse gesto é crucial para apagar a
imagem de ingovernabilidade que a Frelimo está a dar do país.
metical - arquivo 2000
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