Moçambique on-line


metical de 29 de Novembro 2000


Detidos de Montepuez não comiam há 9 dias
 
A cela da morte

(Maputo) A "mt" conseguiu uma versão não governamental sobre a macabra morte colectiva de 83 reclusos numa cadeia policial de Montepuez, Cabo Delgado. Os detidos morreram de asfixia, como diz o relatório médico já divulgado, mas uma coisa acelerou a tragédia: eles não tinham o que comer desde o dia 12 de Novembro, data em que a maioria já estava detida na cadeia do comando policial local. A nossa fonte é um engenheiro que trabalha na vila há mais de dois anos. Conversamos longamente com ele, na manhã de ontem.

Neste momento, a situação na vila está calma. Mas a fonte relatou-nos um cenário de pânico no interior do distrito: dezenas de militantes da Renamo, uns alegadamente armados, estão a caminhar em direcção à fronteira com a Tanzania, fugindo a um ambiente que nos foi descrito como o de uma "forte repressão policial". E de outros locais do distrito, chegam a vila notícias sobre uma onda de enforcamentos. "As pessoas que fogem para a Tanzania e as que estão a enforcar-se têm medo de represálias", contou-nos a fonte.

Os antecedentes remontam às manifestações da Renamo do dia 9 de Novembro, em que morreram 17 pessoas, entre as quais 7 agentes polícias. "Foi uma manifestação bem organizada, uma vez que veio muita gente do interior".

Depois da chamada quinta-feira sangrenta, a Polícia iniciou uma campanha de detenções dos envolvidos nas manifestações. A nossa fonte disse-nos que a detenção não visava especificamente os militantes da Renamo como tal, mas aqueles sobre quem pesavam suspeitas de terem participado no saque a lojas e entidades públicas. "Muitos entregaram-se voluntariamente. Aqui foi possível identificar os culpados pois todos conhecem-se".

A recolha dos manifestantes ao calabouço deu-se até o dia 12. E as autoridades judiciais iniciaram logo o julgamento dos detidos. Mas, afinal, nenhum dos condenados podia transitar para a cadeia civil pois esta "não tem condições. Está podre. Estão a tentar arranjar". Por isso, os condenados e os não condenados permaneceram na cela do comando da Polícia, a tal cela descrita como tendo 7 metros por 3. "É um lugar de facto pequeno, que só dá para três pessoas".

À altura das manifestações, a cadeia civil já estava sem condições, e não albergava nenhum condenado normal, segundo a nossa fonte. Este engenheiro enfatisa um facto: a Polícia não dava comida aos homens. "Muitos dos detidos foram capturados nas suas machambas e sem a presença da família". Nem podiam, nesse contexto, receber comida de casa. Foram vivendo naquele ambiente escaldante, com fome e sem ar suficiente, perdendo forças paulatinamente.

Mas o facto de a morte ter sido colectiva, ou seja, o facto de todos terem morrido no espaço de poucas horas, suscitou comentários de que terá havido outros factores de peso. A nossa fonte não quer confirmar a história da magia negra e a alegação de que, para precipitar a morte, alguém fez introduzir na prisão fumo de motor de viatura. "Há muitas histórias que são contadas aqui em Montepuez. Não vale a pena dar ouvidos a isso".

O facto de Montepuez não ter condições prisionais para aprisionar tão grande número de pessoas em simultâneo, levou a que alguns dos militantes da Renamo, nomeadamente "os líderes da manifestação", fossem transferidos para Pemba.

O DISTRITO ESTÁ A SER ABANDONADO
Ontem, Montepuez parou para ter uma reunião pública com o governador José Pacheco, que acaba de regressar à província do estrangeiro. Não conseguimos apurar o que foi debatido, mas consta que o governador deve ter apresentado o seu "sentimento de dor" pelos malogrados. É que "cerca de 70 % dos detidos mortos eram pessoas conhecidas aqui na vila". Mas Montepuez está a ser abandonado, diz a nossa fonte. Dezenas de militantes da Renamo estão a tentar abandonar a fronteira com a Tanzania, fugindo a eventuais represálias. "Alguns estão a ser capturados e colocados nas prisões distritais". Ou seja, parece estar a continuar uma onda de detenções.

Para além deste alegado abandono, a fonte relatou a existência de enforcamentos no interior de Montepuez. Alguns enforcados, acrescentou, estão a aparecer com mangas nos bolsos das roupas, o que pressupõe que estejam a passar fome.

- Há fome aí?

"Não creio que seja uma coisa generalizada". O engenheiro traçou-nos um cenário de relativa normalidade alimentar. Ele, que chegou à vila há dois anos, ido de Maputo, crê que os níveis de produção das principais culturas - algodão, milho e amendoim - mantém-se.

Quanto à responsabilização local pela tragédia, a fonte conta que o comandante distrital substituto encontra-se detido. Eis a alegação: "falta de tomada de decisão". Ou seja, ele permitiu que as tragédia acontecesse, não fez nada para impedí-la. A ausência de uma prisão à altura tem servido de encobrimento. Na altura dos acontecimentos, o dirigente máximo do Estado no distrito era o director distrital da Educação. Tanto o administrador como o comandante distrital estavam ausentes. Mortepuez, como lhe chama Mia Couto num texto publicado nesta edição, é já um distrito trágico. Perdeu, desde 9 de Novembro, 103 habitantes.
(Marcelo Mosse)

 



A opinião de Mia Couto:
MORTEPUEZ

Seja qual fôr o resultado do inquérito, uma coisa já sabemos ter acontecido em Montepuez - o profundo desrespeito pela vida. O tratar-se gente como gado. O deixar-se de escutar quem sofre. Os que estavam presos na cela de Montepuez já eram antes prisioneiros dessa lógica que levou o agente policial a olhar o pobre cidadão anónimo como objecto pouco rentável.

Fossem homens ricos a quem se pudesse extorquir uns dinheiros e o assunto teria sido resolvido de outra forma. Fossem paquistaneses de qualquer nacionalidade ligados com assuntos de droga e teriam direito a aprisionarmo-nos a nós, que somos reféns dessa impunidade. A morte de dezenas de moçambicanos não pode ser desligada do assassinato de Carlos Cardoso, em Maputo. Porque Cardoso lutou por esse homem anónimo e pobre, que não sendo visível nem da família dos poderosos, se encontra desarmado perante a injustiça.

A morte de compatriotas nossos em Montepuez pode ter a mesma origem de quem quer matar o nosso país: por asfixia. Por impossibilidade de respiração da nosso sentido de humanidade.



Editorial:
CRIME DE ESTADO

As informações até agora disponíveis apontam para o mesmo sentido: a morte colectiva em Montepuez foi resultado de uma acção vingativa por parte da Polícia, que usou um instrumento do Estado para apagar ódios extremados. Estamos perante mais um daqueles hediondos actos praticados por agentes policiais, com a cumplidade do Estado. Num caso como este, o governo tem de tomar uma atitude firme de responsabilização dos culpados, tanto mais não seja para dar ao mundo uma imagem, embora cada vez mais irrealista e menos genuína, de cometimento para com os mais elementares direitos humanos.

E a responsabilização desse acto terá de atingir os mais altos dirigentes governamentais dessa área. Estamos a falar de Almerinho Manhenje, o Ministro do Interior. Manhenje chegou à Polícia num momento em que a podridão no seio da corporação era total e a criminalidade atingira então picos jamais vistos desde o fim do Estado socialista. A Polícia representava o que de mais corrupto tínhamos na sociedade, encobrindo as alas gangsterizadas que usa(va)m o crime como modo de vida, ante a cumplicidade serena de Manuel António.

Nos primeiros meses após a sua nomeação, Manhenje trouxe um efeito renovador: a pouco e pouco, a criminalidade reduziu e, pelo menos em Maputo, as pessoas experimentaram uma sensanção de quase alívio. Mas o ministro falhou numa coisa: acomodou-se nessa ideia, afinal lunática, de que, com ele, a criminalidade tinha reduzido. Não teve a capacidade de observar que isso podia não ser o resultado prático da sua acção, mas o efeito simples e lógico da troca de ministro.

As gangs esperaram para ver, para depois voltar a saquear. E Manhenje não conseguiu prostar-se categoricamente do lado oposto desse ímpeto criminoso que rodea ainda o nosso dia a dia. Por isso, o ministro não serve. Pode-se argumentar que o Estado tem poucos meios para dotar a Polícia de condições razoáveis, mas Manhenje nunca se assumiu activamente contra a generalização do crime.

E Montepuez só vém confirmar o laxismo do ministro, trazendo também esta triste realidade: a de que o Estado assumiu-se, agora, como um Estado criminoso. O Estado acaba de assassinar, sumariamente, 83 cidadãos numa cadeia em condições precárias. E o ministro Manhenje é o ministro do órgão do Estado responsável por essa tragédia, pois a cela da morte é da alçada da Polícia. É ele que deve ser responsabilizado, para o efeito dessa responsabilização ser mais enérgico e introduzir entre os governantes a ideia de que estão no poder para servir os cidadãos. Só assim Joaquim Chissano poderá voltar a mostrar algum pendor correctivo dentro do seu governo. Num momento em que Moçambique está mergulhado numa incógnita no que diz respeito à normalidade política, e enquanto o esperado diálogo com Dhlakama não chega, esse gesto é crucial para apagar a imagem de ingovernabilidade que a Frelimo está a dar do país.
 


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