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7 de Abril 1998

"Mas, Senhor Doutor, Isto é Mesmo Assim?"
Da Dominação Masculina: Instituições, Género e Assédio Sexual

por Estêvão Filmão

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Foi assim que aquela minha amiga e colega me abordou - lá na terra em que ainda se acredita que os "doutores" têm a resposta certa para "todos" os assuntos. Excepto, evidentemente, os relativos à "esperteza" nas lógicas de acumulação de capital, para o que normalmente se dispensa a relevância da sua opinião.
- "Isto o quê?" - Perguntei eu desejoso de saber um pouco mais, perante a ausência na mente de qualquer evocação precisa sobre o que pudesse vir a ser o "isto" contido na pergunta.
- "Sabe, doutor, é que a nossa vida aqui vai mal..."
Importa, porém, precisar que o "aqui", na circunstância, se referia à instituição.
E foi este o início de uma longa conversa, feita de algumas confidências também, sobre a vida laboral, as representações da mulher, do jovem, da devoção que se deve ter pelos "chefes" quando não se quer ter apertos de natureza financeira, e não só, mas também para se ter acesso á carreira nobre, para "escamotear a fraqueza de espírito e a moleza de costumes". Passámos em revista os atropelos à competência e o "costume" da glorificação dos corpos e dos sexos submissos, o elogio da tribo, da região e do "companheirismo", na frente comum da caça ao dólar ou "bilhete verde". Talvez tivéssemos elementos (pensei) para compreender as derivas de tantas coisas que ainda nos restam a entender com a sobreposição de tantas referências culturais heterogéneas, nas condições que são as nossas, neste limiar do século XXI.

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A minha amiga disse-me também (para desabafar) que o seu chefe directo lhe havia convocado ainda muito recentemente "apenas" para lhe recordar umas verdades "muito simples". Verdades que ela deveria ponderar. Ela que sempre se opôs (e jura persistir, sabe lá Deus até quando e como) ao modo dominante de governabilidade da "coisa pública", isto é, da "empresa"! Com efeito, entre colegas já ninguém faz o que tem por dever sem a mediação de uma "promessa" de retribuição, quero dizer, remuneração. Quanto ao resto, tudo se passa, nas relações hierárquicas, como se a violência (reconhecida) fosse apenas a pancadaria e a guerra revoluta feita com armas de fogo em punho. Tudo o resto não parece "aqui" ter a menor importância!

Mas entre este mercantilismo laboral e a privatização consciente do espaço público, reproduzindo dependências, há o tempo que dura esta conversa. Sobretudo, a tomada de consciência da espessura dos corredores que, desde ontem e antes de ontem, andam pejados de rumores sem fim e que, infelizmente, alguns factos de triste memória - como o que conto - vão ainda confirmando. Podemos juntar-lhes também a chantagem. Mas, felizmente, o espírito que se destaca e faz perguntas não está ainda totalmente corrompido. Porque "Poxa pá...decididamente, enquanto as gajas tiverem a racha estão irremediavelmente lixadas. Não há hipótese!". Vem mesmo a propósito recordar a citação?

O problema é que na tropa (SMO, Serviço militar obrigatório, para quem não sabe) chamávamos a tudo isto de "aproveitamento natural das árvores", conceito aplicado a outros contextos, para fins de camuflagem estratégica. Mas, pelo menos lá, a moral e a moleza de costumes eram tolerados, como antídoto ao rigor de uma disciplina militar deshumanizante. Isto, em acréscimo, permitiu talvez que o Ministério da Defesa fizesse algumas economias sobre materiais bélicos mais sofisticados ainda para a defesa dos corpos predispostos ao sacrifício supremo, em defesa da "nação". Mas hoje falamos do desperdício: o "cabritismo" de alguns sobre os impostos da maioria, em detrimento da redistribuição daqueles por todos, sob a forma de condições de vida melhorada, através de serviços públicos mais performantes e de melhor qualidade. Estamos, pois, em presença da utilização dos "recursos" das instituições (todos eles, tanto humanos como materiais) para fins meramente pessoais. E neste contexto que a mulher - mais uma vez - aparece-me como a duplamente afectada e "perdedora". Doravante, ela é considerada um "recurso" privilegiado e não já aquele agente operador da "inversão dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos ao homem e à mulher". Cl . Vidal (1991) analisa com muita fineza esta nova situação favorável a mulher, tomando como exemplo os casos da Costa de Marfim e do Ruanda, a propósito do episódio violento da "guerra de sexos" e concluiu que esta última intervém com o acesso da mulher ao salário e ao empreendimento, em contextos de crise dos empregos masculinos.

Mas voltemos às "verdades muito simples" de há pouco, em que um chefe tinha para dizer a uma subordinada (com ou sem a ajuda de alguma "mesinha" tradicional, isso tem pouca importância para o caso em análise). Pois a verdade "muito simples" era nada mais nada menos senão a injunção de que se ela não fizesse como as "outras" fazem, se continuasse com as suas atitudes hostis do ano anterior poderia ver comprometida toda a sua progressão ulterior e piorar a sua situação. Trata-se aqui da alusão a uma eventual expulsão, certamente num processo sumário de delito comum. Fazer como as outras que o sistema absorveu significa, em definitivo, duas coisas: por um lado, prever uma percentagem para o "chefe" nos subsídios das missões de terreno como garantia de ulteriores missões; e, por outro lado, sendo mulher, não pôr limites às suas disponibilidades sexuais, sempre que lhe sejam sugeridas, exigidas ou solicitadas pelo seu "chefe". Ou, em contrapartida, o mecanismo funcionando também como meio de pressão sobre a mulher, em contextos de subordinação, afim de se obter como "suplemento", mais cedo ou mais tarde, que as pernas se lhe sejam abertas, no limiar da resistência. Chamemos a isto, com ironia, o poder simbólico sobre as mulheres! Em troca, fica assim selada a adesão ao clube dos "companheiros". Sendo colega, jovem, mulher, subordinada e com ambições de carreira, ela passa assim a entreter relações preferenciais e de tutela (privada) da parte do seu chefe. E a miragem do igualitarismo de relações definidas à partida como sendo "desiguais"! Ora, "isto" não deixa, no entanto, de ter reflexos na configuração formal da instituição e no seu modo "regular" de funcionamento. Ele é caracterizado, sobretudo, por um "golpe de estado permanente". Mas sempre à margem das disposições objectivas legais. Porém, não adiantam as tautologias ou jogos de palavras inúteis: afinal, onde não há lei, o que é "legal" e o que é "ilegal"? Há alguma categorização pensável? Não vejo, por isso, o que possa existir de "muito simples" no meio deste emaranhado todo. De certo, não é suprimindo as instituições que elas se "modernizam" como também não é cortando as espigas mais altas que as mais raquíticas crescem.

Concordámos que a denúncia desta e de outras situações similares dificilmente poderá ser feita por quem delas tire proveito. P. Bourdieu (1992), ao desenvolver a sua teoria do "habitus", chama particular atenção ao facto de que o dominado contribui sempre para a sua própria dominação em virtude da interiorização, por parte deste, das disposições objectivas do dominante. Daí a importância, para o dominado, da tomada de consciência deste facto e poder recorrer a instrumentos, como forma de tentar sair-se do círculo vicioso e dos automatismos do quotidiano.. C. Toulabor (1992), estudando o caso do Togo do tempo da ditadura do general Eyadema, associaria de uma maneira inextricável o poder, o dinheiro e o sexo erigidos em valores supremos e ética de governação e que os governados reproduzem no seu imaginário. Mas, em Moçambique - finda a guerra e a ditadura do partido único - enquanto, por um lado, a Assembleia da República não chega a um consenso sobre a noção de "assédio sexual" e não encontra a fórmula mais apropriada para "nomear" estas práticas (na "generalidade" e na "especificidade" das suas variantes) o crime não existe. E isto, obviamente, por "insuficiência de provas". Não há matéria, apesar de ser moeda corrente em determinados meios laborais - conforme no-lo sugere, aliás, a pergunta que está na origem destes apontamentos. Ora, isto não deixa de ser preocupante. Por outro lado, a ambiguidade do silêncio (mesmo quando se tem a íntima certeza que os gestos observados não significam outra coisa senão "isso") ou das "conversas" em voz baixa, cochichando, na concha da mão junto à orelha do interlocutor, vai imperando. Até que os "doutores" (que, diga-se, não têm ainda por missão essencial moralizar a sociedade quanto o demonstrarem o infundado de certos preconceitos, mas será que eles estarão completamente destituídos daquela missão?) se decidam, enfim a escrever sobre as modalidades da "(des)integração" da mulher, mas também do jovem, no sistema do capitalismo internacional. Mas, hoje, reinterpretado "à maneira...originária". Isto é, que - mais uma vez - os mais novos devem aprender "tudo" dos mais velhos a quem devem respeito incondicional. Quanto às mulheres (porque recentemente admitidas ao meio laboral) devem obedecer (sem pôr condições) aos homens e não só aos seus maridos e noivos! E, como diz o ditado, "para bom entendedor, meia palavra basta" ou, si se quiser, é como está escrito na Bíblia: "Quem tem ouvidos para ouvir que oiça!" e apetece-me ainda acrescentar "agora e sempre AMEN!"

Aliás, como também é sabido, confortam esta postura de inércia algumas ideias arrancadas "à força" ao mundo da psicanálise. Atribuídas a S. Freud, tais ideias tendem a demonstrar que a mulher - consciente da sua "mutilação" congénita em relação ao pénis masculino, que não possui - estaria condenada (psicológica e fisiologicamente) a compensar esta ausência com uma busca permanente daquilo de que estaria mutilada enquanto ser visceralmente carente e "incompleto".

Mas, a crise dos tempos presentes é favorável a mudanças. Ela acelera a tomada de consciência de vários estratos sociais que se confrontam permanentemente com condições de segregação que geram dependências, o caso da mulher em particular. Isto faz-nos aproximar do ponto de ruptura e de não-retorno destas epistemologias individualistas e "coisificadoras". Uma vez atingido este ponto de "saturação" - porque o trauma da violência da guerra não autoriza mais a que se iniciem outros assim de mão beijada - não há mais necessidade de se falar do "sexo" ou de procurá-lo obsessionalmente numas pregas de pele penduradas algures, em lugar oculto, entre as pernas. O sexo socializado, esse, teremos já apreendido a viver com ele em toda a sua naturalidade (sem necessidade da "prótese" institucional que condicione o seu usufruto às estratégias de perpetuar a dominação e o conflito). Isto, na nudez absoluta da sinceridade dos nossos corpos (diferentes sim, pelos seus estigmas biológicos, mas quão iguais, porque sem a roupa da "mentira", mas somente nus tal e qual viemos ao mundo.). Nestas condições, o sexo estará, enfim, no seu devido lugar: isto é, na cabeça e no coração, quero dizer, no "ser" todo ele inteiro, em cada gesto "sexuado" que cada Homem e cada Mulher faz, porque inerente à sua natureza de ser Humano. Criador. Por isso, a cada "macho" de reconciliar-se com a sua feminilidade e a cada "fêmea" de se reconciliar com a sua masculinidade. Tal me parece ser o princípio originário da administração de qualquer forma Humana de justiça, a institucional em particular. Pressupõe também que cada um se predisponha a partilhar os valores que possui, num engajamento por uma sociedade mais justa, atento às provocações do quotidiano geradoras - a longo, curto ou médio prazo - de novas violências institucionalizadas . No caso particular de Moçambique tal postura implica - hoje como no passado - a reinvenção de novos ideais onde homens e mulheres possam contribuir "livremente" com o potencial da sua diferença. Os ideais da "nação", da "revolução" e do "cabritismo" não parece que sejam suficientes para - juntos - sobrevivermos ao século XXI.

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