A Mortalidade Materna (Em memória da Suminha e da Marta, para que a sua história não se repita) por Maria Isabel Casas
Uma mulher morreu ontem à noite. Uma mulher nova, cheia de vida. Pronta para culminar os seus estudos universitários e começar a sua experiência de mãe pela primeira vez. Visitou o hospital duas vezes nesse dia, quando sentiu que alguma coisa não estava a andar bem e voltou para casa depois de ter recebido um "não é nada" como resposta. Na sua terceira viagem ao hospital convulsionou, entrou em coma e morreram ela e o seu filho. Uma outra mulher morreu hoje. Uma mãe de oito filhos que tinha tido a sua última menina duas semanas antes e estava a recuperar da cesariana. A amiga que a visitou há dois dias disse que estava a sorrir na sua casa, a descansar, a desfrutar a sua criança. Dois dias depois teve dores, foi ao hospital, fizeram-lhe uma raspagem, voltou para casa, teve uma hemorragia e foi atendida no hospital cinco horas depois de ter lá chegado, já para morrer.
As duas eram mulheres moçambicanas com esperança, com vontade de viver. As duas morreram do que poderíamos chamar, sem dúvida, uma morte anunciada, previsível, evitável.
O acto de parir um filho - para o qual o corpo de uma mulher saudável está preparado - não deveria ser uma ameaça para a sua vida. Nenhuma destas duas mulheres estava malnutrida, nem acudiu tardiamente ao hospital. Morreram porque não se fez algo a tempo, porque houve atraso no tratamento.
Por esta ou outras razões, que afectam sobretudo mulheres mais pobres - a distância do hospital, a falta de meios para lá chegar ou pagar o que muitas vezes lhes exigem, a saúde enfraquecida pelas condições de vida, entre outras - para uma enorme quantidade de mulheres moçambicanas uma gravidez converte-se numa doença de alto risco.
Em Moçambique, como em muitos outros países do mundo, o fenómeno da mortalidade materna é claramente um problema de saúde publica, coberto por uma capa de normalidade que é preciso começar a levantar, a desvelar. Atrás do fatalismo que o acompanha escondem-se, muitas vezes, as responsabilidades individuais do pessoal de saúde e a reacção por vezes tardia dos familiares. Manter o silêncio, aceitar a mortalidade materna como "fatalidade do destino", é ser cúmplice destas mortes.
Vários estudos assinalam exaustivamente as causas da mortalidade materna. Não vou entrar nisso. Sinto, porém, que é o meu dever como mulher juntar a minha voz à da outras mulheres no mundo na denúncia do que não é normal, e não pode continuar a ser visto como tal. Que factores contribuem para tornar invisível a morte de tantas mães? Não estarão relacionados com o lugar e a importância que a sociedade outorga às mulheres?
Se morrem tantas mulheres em Moçambique por que razão poucas vezes se investiga a fundo as causas? Há impunidade. E a aparência de normalidade da mortalidade materna favorece essa impunidade.
Talvez seja útil conhecer a experiência de outro país pobre neste âmbito, porque o argumento da pobreza e da falta de recursos não serve para justificar tanta negligência. Em Cuba, em casos de mortalidade materna ou morte infantil de menos de um ano, primeiro faz-se uma investigação a nível de base no hospital onde aconteceu. Investiga-se a história da paciente desde que ficou grávida até o parto. Se houver responsáveis (neste ou noutros níveis do Estado), sancionam-se. O processo vai ao nível provincial e daí ao Ministro da Saúde. Isto obriga a todos os que prestam cuidados de saúde a uma grávida a serem cuidadosos no seu trabalho, a estudar, a perguntar quando têm dúvidas e a trabalhar numa equipa. Por isso se diz que qualquer obstetra em Cuba está sempre com stress. Ainda bem. Poderíamos ter uma certa dose de stress cá. Se calhar muitas mulheres estariam ainda vivas.
A mortalidade materna é uma responsabilidade de todos. Do pessoal de saúde (no sector formal e tradicional), do Ministério de Saúde e das DPS, dos familiares da mulher grávida, da sociedade que a aceita sem dizer nada.
O problema não é a quem culpar. É necessário assinalar responsabilidades, sim, mas o mais importante é perguntarmo-nos o que significam neste país as mulheres e como é que todas as palavras que elogiam a maternidade não se convertem em acções de protecção às mulheres que são mães?
Se nós, mulheres, não reagirmos, se cada uma de nós não falar pela mãe, a irmã, a amiga, a conhecida que morreu, estaremos contribuindo para cobrir as suas mortes com um silêncio que é cúmplice da negligência que as causou.
Quebrar esse silêncio, mostrar a anormalidade do que aparece como normal, talvez seja a maneira de começar a salvar mais vidas de mulheres nesta terra.
Maria Isabel Casas
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