por Maria José Arthur
Quando os nossos representantes políticos humilham e insultam as mulheres moçambicanas em plena sessão do Parlamento, é caso para nos interrogarmos: que poder é este?
Na 7ª sessão da Assembleia da República, de 4 a 12 de Dezembro de 1997, foi discutida a nova Lei do Trabalho que vem substituir a de 8/85. Guilherme Mavila, Ministro do Trabalho, apresentou a proposta que foi em seguida apreciada "na generalidade". Após a sua aprovação, passou-se à discussão dos artigos um por um.
A primeira parte da sessão decorreu num ambiente que surpreendeu quem, como eu, está afastado dos meios do poder. A agressividade das locuções, a descortesia e a grosseria, foram a característica dominante. Porque não apareceu ninguém indignado e a protestar, parece ser esse o clima normal que se vive no Parlamento. Não é este o propósito do artigo, mas temos aqui matéria para reflectir…
A aceitação da proposta na generalidade foi centrada no vivo despique entre a Renamo e a Frelimo, porque os primeiros condicionaram a sua aprovação à necessidade de alterar o regulamento que rege o funcionalismo público. Este, apesar de ter sido revisto em 1995, contém ainda no seu preâmbulo disposições que subordinam o aparelho de Estado ao partido Frelimo.
Relativamente à mulher trabalhadora, a nova lei propõe a manutenção dos 60 dias de licença de parto e não 90 dias, como foi sugerido pelos sindicatos. Considera-se que essa nova medida pode contribuir para excluir ainda mais a mulher trabalhadora das oportunidades de emprego, temendo-se que os empregadores privilegiem a contratação de indivíduos do sexo masculino. Entre os deputados (de todos os partidos) havia duas posições: os que concordavam com o proposto na lei, e os que achavam que os 90 dias eram mais apropriados, mas que se deixavam convencer pelos argumentos dos primeiros. Tudo muito civilizado, "gender friendly". Os argumentos em defesa da mulher foram de carácter fisiológico (necessidade de recuperação física após o parto) ou baseados no reconhecimento das "funções reprodutivas e de educação da nova geração".
A situação foi totalmente outra durante a apreciação da lei "na especialidade", na discussão do artigo 21°, que trata do assédio sexual. No início, tratava-se de decidir sobre a melhor formulação: "conduta de carácter sexual não desejado" ou "assédio sexual". Os deputados optaram pela segunda designação, mesmo se advertidos do "perigo" dos extremos em voga em países como os Estados Unidos e a França, em que "oferecer uma rosa, dizer um galanteio, olhar com persistência uma colega, é assédio sexual". Ficou claro para eles que o que se pretende punir são os "atentados à moral da mulher", "à moral pública" e os "apalpanços nas partes privadas das mulheres", em suma, os "crimes contra a honra" (como me perguntou um amigo meu, quais são as partes públicas da mulher?).
Porque os senhores deputados ficaram devidamente assustados com os "fantasmas" que vêm do "mundo ocidental", decidiram que vai ser necessário definir o que se entende por assédio sexual, para não importar concepções que nada têm a ver com a "cultura do Moçambicano". Que somos todos pessoas de bom senso e que a "nossa sociedade é rica de bom senso". Que é necessário ver o assédio sexual de um ponto de vista do género, i.e., que ele pode ser perpetrado de homem para homem, de homem para mulher, de mulher para homem e de mulher para mulher. Estes propósitos não podem deixar de espantar, já que todas as sociedades são "ricas em bom senso". O bom senso, aliás, reflecte as ideias que as sociedades têm sobre si mesmas, e assim cada sociedade tem o seu "bom senso" que é melhor que o dos outros. Somos então ricos do nosso próprio bom senso. Para meditar! Mas passemos adiante e deixemos para uma outra ocasião o bom senso e os sistemas de controle social.
E então a discussão passou para um segundo estágio, mobilizada em torno de uma intervenção que refere que o assédio sexual da trabalhadora em relação ao chefe ou empregador é muito mais frequente. Que os homens são muito mais assediados do que as mulheres. Que é preciso então prever sanções contra esta trabalhadora que assedia o empregador. Nesta altura, porque aparentemente alguém da bancada da Frelimo não aplaudiu, surgiu a afirmação: "Parece que os homens da Frelimo não são assediados". Vejamos o que está em causa aqui: combate-se a não adesão com insultos. Se todos os homens são assediados, os que não sofrem essas investidas são menos homens do que os outros. Trata-se de um mecanismo básico para conformar uma assembleia masculina a uma concepção dominante de masculinidade, que reúne os homens numa posição comum perante a "mulher".
As intervenções sucederam-se e aí podemos apercebermo-nos de que a "mulher" utiliza o seu sexo para se promover, "usa mais dos seus dotes físicos do que a sua inteligência, infelizmente é verdade", como disse um dos intervenientes. Fizeram-se piadas: "Então ela está a ser muito inteligente porque está a usar as armas que tem". Deram-se conselhos: "A mulher deve-se cultivar para uma emancipação real. Deve passar do discurso, deve-se comportar se quiser ser respeitada como igual".
Escusado é dizer que durante a totalidade deste debate a assembleia riu, aplaudiu, fez piadas e, possivelmente, os presentes deram palmadas nas costas uns dos outros. E foi assim então que depois da violência e da agressividade, os deputados encontraram as bases de uma cumplicidade masculina básica. Não mais políticos de campos diferentes, mas homens partilhando valores comuns. O riso tornou possível uma comunhão, serviu para exorcizar rancores e atritos recentes. A barbárie reconciliadora. A catarse que se realizou através do reconhecimento de que afinal todos detêm uma identidade masculina básica. E aqui se vê pelo menos um exemplo de como o poder político, no seu funcionamento, é essencialmente masculino.
Mesmo que a nova lei preveja sanções contra o assédio sexual, depois deste delírio misógino da maioria dos senhores deputados, com o beneplácito da presidência, as mulheres são sem dúvida as grandes perdedoras: o assédio sexual, tal como foi apresentado, ignora a dimensão importante do poder. Do poder que detêm um empregador ou um superior, que condicionam a obtenção ou a manutenção do emprego e a promoção profissional, à prestação de serviços de carácter sexual. Uma trabalhadora ou a candidata a um emprego não têm esse poder. Podem tentar seduzir, mas o alvo do seu desejo tem sempre a possibilidade de recusar.
Por outro lado, se a "mulher" se "deve comportar se quiser ser respeitada como igual", temos então que a igualdade é condicionada à demonstração das suas qualidades. Portanto, a "mulher" não é igual ao homem; pode vir a sê-lo se provar que o merece: se provar que abandonou os maus hábitos e comportamentos das mulheres?
Assistimos assim a uma apresentação do "bom senso" da sociedade política moçambicana, que quanto a mim são des-propósitos que humilham e atingem directamente a dignidade das mulheres deste país. Que isto se tenha passado em plena Assembleia da República, é ainda muito mais grave e perigoso: a máscara caiu e vemo-nos perante um poder masculino, machista e misógino. A julgar pelo que dizem nos discursos públicos, os homens do poder preocupam-se com os direitos das mulheres. Mas está demonstrado que isso é só aparência, que se trata essencialmente de uma busca ao voto e suporte femininos.
Saúdo o único deputado e as poucas deputadas que tentaram pôr cobro ao desvario. No meio a toda esta insanidade, é um alívio descobrir que há alguns que não reagem segundo o "bom senso", mas que têm como parâmetros a justiça e a dignidade humanas.
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