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7 de Abril 1999

A BONDADE DA JUSTIÇA
por Conceição Osório

Pensei, quando me propus a escrever um artigo para comemorar o 7 de Abril, reflectir sobre alguns dos caminhos, passos e tropeços que temos dado nesta luta pelos direitos das mulheres. Lembrei-me até de falar, neste dia em que nos oferecem rosas e nos enfeitam com belas palavras, de conquistas e vitórias. Mas a história da Lúcia interpôs-se entre o meu desejo de cantar a esperança e a realidade, exactamente como um murro no estômago ou como uma seta no coração.

Hoje, seja qual for o lugar em que cada um se situe, já não é aceite como socialmente legítimo o exercício da violência (falamos principalmente da violência física) sobre a mulher. Questão central da agenda dos doadores e das instituições que supervisam as políticas sociais e económicas em Moçambique, a mulher ou melhor o "género" (como esta tradução literal é por si só tão obscura…) tem sido construído como objecto de estudo por parte de quem investiga e objecto de acção por parte de quem tem por missão ou vocação alterar as relações de poder, em que a mulher ocupa, invariavelmente, um lugar subordinado.

Portanto, em Moçambique, como no mundo (pelo menos no não "fundamentalisticamente" islamizado) não é politicamente correcto legitimar-se publicamente a discriminação a que a mulher é sujeita. A violência, (estruturante das relações sociais de género) principalmente nas suas formas mais visíveis, tem sido amplamente combatida. O argumento cultural, como a mãe (e o pai) de toda a fundamentação discriminatória é cada vez menos utilizado ou pelo menos começa a ser brandido apenas quando a parafernália dos argumentos machistas se esgota e agoniza. Estaríamos assim numa situação que não sendo a ideal, nos permitiria olhar confortavelmente para a situação da mulher e, como diria um revolucionário fora de moda, "o horizonte é vermelho".

No entanto, como a vida e a investigação são feitas de surpresas (são elas o seu alimento) tropeçamos na violação dos direitos da mulher feita precisamente pela instituição que os devia garantir: os tribunais. E quando falamos em tribunais não estamos a referir-nos aos tribunais comunitários, onde os agentes da justiça dirimem com as suas representações e o seu senso comum os conflitos locais. Estamos a falar dos "pilares da justiça", dos que de toga e capelo se colocam hoje como acima e por cima do vulgar cidadão. Estamos a falar dos que convocando a neutralidade e a universalidade da Lei decidem sobre o justo e o injusto.

Todos sabemos que os que vestem de toga e capelo são homens e mulheres com práticas sociais que não os distinguem do comum dos mortais, com papeis e funções em outros campos que não o jurídico, mas o que também sabemos é que são profissionais que devem cumprir e fazer cumprir a Lei. Longe de nós as generalizações, mas inquieta-nos o conhecimento de como os casos de homicídio contra as mulheres são por vezes superiormente julgados. E, caros leitores, estamos a falar de homicídio, não de um olho negro, um dente arrancado, um braço partido: estamos a falar de alguém (que não por acaso é mulher) que pelo marido é morta à pancada.

Mas o criminoso não fugiu (por que havia de fugir?) não se escondeu, não negou. Levado a tribunal confessa: matei a minha mulher. E por quê quer saber o douto juiz? Porque estava bêbado, porque fiquei maluco, responde o criminoso. E continua a explicação: mas eu não queria matar; empurrei a mulher e ela caiu. Coitada. Agora estou sozinho, ninguém cozinha, ninguém cuida das crianças. Não foi por mal senhor doutor juiz.

E o doutor juiz retira-se para pensar, para reflectir sobre a história daquele pobre homem, que já não tem quem dele cuide, que num momento de desvario (e o que será que a mulher não terá dito para o provocar?) tira (não mata, porque matar é um termo pesado) a vida àquela mulher. E como bom cristão o douto juiz, superiormente formado em Leis, reza uma ave-maria pela morta, e deixa que o seu coração se inunde de compaixão pelo homem.

Nesta altura da sua reflexão, o assassino já deixou de o ser, e na sábia opinião do juiz, a pena prevista de 20 anos de cadeia, (sem apelo, nem agravo,) é reduzida a uma belíssima lição de moral (que fez chorar todos os que assistiam ao julgamento) e a uma indemnização simbólica aos pais da vítima. Assim um assassinato foi desqualificado como crime.

Mas infelizmente esta história não é um conto macabro feito por uma feminista radical num momento de ódio ao Homem. Infelizmente a Lúcia foi morta, tinha 30 anos, e a vontade que nos é devida de continuar a viver.

Ah! Ia-me esquecendo. Vi há dias o marido. Casou e talvez não mate outra vez. Quem sabe?

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