Siba Siba: convite à lembrança Há coisas irremediáveis, há mágoas pelo que poderia ter sido e não foi. E perante isto só nos resta arriscar um pacto contra a amnésia, pela absoluta necessidade de recordar. Vai fazer um ano que Siba Siba morreu. Morreu de morte matada porque era jovem e competente e acreditava que era possível repor a justiça, endireitar o mundo. Morreu, pois, de juventude. Tinha só 34 anos, se lhe houvessem dado oportunidade de envelhecer se calhar ganharia um certo cinismo que o protegeria contra esse tipo de morte. Morreu também porque era um leal funcionário do Estado e como tal lutou pelos seus interesses. Se tivesse sido corrupto, se se tivesse aliado a quem andava a roubar estaria vivo, porque afinal de contas foi também a lealdade que o matou. Matou-o igualmente essa força que os jovens têm para acreditar sempre que é possível sermos melhores e vivermos com mais dignidade. Juventude, lealdade, crença na justiça, tudo isto se conjugou para matar Siba Siba. Fico triste. Triste porque o espectáculo da juventude que morre é das coisas mais difíceis de aceitar. Como poderia ser de outro modo? Siba Siba esperava ainda muito da vida, tinha afectos e paixões, tinha projectos e ambições. Na prática, começava apenas a ensaiar os primeiros passos. E quando penso neste caso não resolvido, neste morto traído, temo que perante as constantes demonstrações de força um dia desapareçam de vez os jovens, os cidadãos leais e os que crêm na justiça. Que um dia alguém tire uma lei para pôr por escrito e oficialmente o que todos já suspeitam: a juventude fica proibida de acreditar na mudança e de cultivar sentimentos de lealdade em relação a qualquer pessoa, instituição ou causa; parágrafo único: a desobediência é punível com a pena de morte. Por esse motivo cultivo a raiva que senti na hora. Quero continuar, até que justiça seja feita, a acarinhar e a preservar este sentimento de não aceitação. A cada sugestão de distanciamento faço deliberadamente por me recordar dele, eu, que nem o conheci. Mas lembro-me das razões porque morreu e isso chega-me para reavivar o mesmo sentimento de inconformismo, nestes tempos em que talvez o mais prudente fosse a indiferença. Mascarada de distanciamento intelectual ou justificada como necessária para poder passar adiante, para pensar no futuro do país, mas indiferença simplesmente. É por isso que temos o dever de não esquecer. Que se fale, que se sussurre se a isso nos obrigarem, que se pintem paredes e que se passem bilhetinhos. A
obstinação em lembrar Siba Siba é afinal também uma luta pela nossa condição humana. Ética e honra. Orgulho e solidariedade. Maria José Arthur [a seguir: O que pensa o ABSA] Savana - 2002 |