n° 99 | 7 de Abril 1997 | Maputo |
por Wenke Adam Onde ficou a grande preocupação dos doadores pelo "género" nos projectos de desenvolvimento? Será que não passava de ser uma moda, hoje substituída pela "participação" e o "ownership"? Lembro-me de ter estado presente numa grande reunião entre as Pescas e uma missão dos países nórdicos, lá pelos anos 1986-87, onde a encarregada dos assuntos de género da missão levantou este assunto como sendo fundamental para a aprovação dum certo projecto de apoio à pesca artesanal. O Secretário de Estado das Pescas na altura não soube o que responder, olhou à sua volta, apercebeu-se que toda a delegação do Instituto de Investigação Pesqueira estava composta por mulheres, e disse: "Bom, minhas Senhoras, talvez vocês possam responder a esta questão?". Mas as Senhoras do IIP ficamos também sem saber muito bem o que dizer. O nosso papel era apenas o de monitorar o estado de exploração dos principais recursos pesqueiros do País, e tentar descobrir novos recursos. Não estava nos nossos livros preocupar-nos com a situação social dos pescadores. Acontece que eram tempos de guerra, a produção agrária andava mal, a pesca era a principal fonte de proteínas animais da população urbana, e a principal fonte de receitas em divisas do estado, através da exportação do camarão. Sabíamos que na pesca artesanal os homens pescam e as mulheres processam e comercializam o peixe. O nó de estrangulamento estava na produção, na falta de barcos e de instrumentos de pesca. Uma vez desembarcado o peixe, a sua procura era enorme, não era nessa fase do processo que se davam os maiores problemas, as mulheres dos pescadores davam conta do recado. Para todos os que trabalhávamos no sector das pescas na altura, estava claro que a primeira medida era aumentar a produção. Mas as nórdicas não ficaram satisfeitas, e o projecto não teve o apoio que merecia, porque não era "gender oriented" e não considerava um módulo dirigido à mulher... O incidente ficou-me a dar voltas na cabeça durante vários anos, procurando em vão qual poderia ter sido o módulo feminino que melhorasse a produção pesqueira naquele projecto. Entretanto, à minha volta, falava-se cada vez mais na importância da análise de género dos projectos, e o assunto mantinha-se presente no meu interesse. Qual seria então a minha felicidade, quando fui trabalhar no Ministério da Agricultura (Minag) em 1993, onde se estava a iniciar a formulação dum programa nacional de desenvolvimento agrário (Proagri), com orientações específicas para que até meados de 1995 todos os projectos e programas de trabalho do Ministério fossem "sensíveis ao género". Fui convidada a fazer parte dum Grupo de Género, que devia ajudar a "sensibilizar" os diversos departamentos e sub-sectores do Minag (Pecuária, Florestas, Investigação, Extensão, etc.) e este grupo interno, por sua vez, estava apoiado pelo respectivo grupo de género dos doadores. A coisa parecia sólida: com participantes de todas as Direcções Nacionais e entidades subordinadas; com o apoio declarado dos doadores e uma formulação explícita nas orientações políticas do sector, nada poderia correr mal. Para meados de 1995, no início previsto do Proagri, os projectos e programas do Minag seriam já, sem dúvida alguma, altamente "sensíveis ao género". Em que consistia a tal sensibilidade ao género? Na realidade, não se tratava de nenhuma grande revolução: era, muito simplesmente, reconhecer o facto de que no sector agrário homens e mulheres cumprem tarefas diferentes, socialmente definidas e complementárias, e que quando se pretende fazer uma intervenção neste sector, é preciso analisar quem faz o quê e porquê, de forma a dirigir o apoio às pessoas certas e na forma mais adequada, para ter o melhor impacto. Trata-se de um princípio aparentemente simples e de bom senso, mas que por diversos motivos é frequentemente ignorado. Um aspecto importante a salientar nesse sentido, é que em Moçambique, por razões históricas, o cultivo propriamente tal das plantas nas machambas dos camponeses, é feito maioritariamente pelas mulheres como ocupação regular e permanente. Os homens desbravam o mato, e participam nas sementeiras e nas colheitas, o resto do tempo procuram trabalho remunerado, para poder comprar os produtos industrializados que a família precisa, ou tratam do gado. Se consideramos que o sector camponês, ou "familiar", produz cerca de 95% dos produtos agrícolas básicos do País, torna-se evidente que são, de facto, as mulheres camponesas que alimentam Moçambique com cereais, tubérculos, amendoim e hortaliças. Qualquer apoio ao sector camponês, devia, portanto, ser dirigido prioritariamente a este grupo... e assim estava também anunciada a intenção do Proagri nos seus primeiros documentos, em 1993/94. O que aconteceu a seguir? Pois... nada. O Grupo de Género trabalhou durante uns meses, enquanto tinha uma pessoa especialmente destacada para coordenar as suas actividades. Bastou a saída desta técnica, para que o assunto caísse novamente no esquecimento. Nunca mais se ouviu falar em grupo de Género, nunca mais os doadores levantaram a questão nas reuniões de coordenação com o Ministério. O Proagri acabou por ser formulado em detalhe, na forma de proposta preliminar, e foi apresentado aos doadores para pré-avaliação num grande workshop em Fevereiro deste ano, praticamente sem referência específica à diferenciação de tarefas ou aos interesses e problemas diferenciados de homens e mulheres camponeses. E ninguém parece ter sentido a falta deste tipo de análise no workshop... Foi pena, realmente. Tínhamos avançado bastante naqueles primeiros meses de trabalho entusiasta. Tínhamos identificado alguns problemas que valia a pena aprofundar mais, como por exemplo, que quando os programas de emergência distribuem enxadas, querem lá saber que os homens e as mulheres usam enxadas diferentes (não por diferenças de sexo, mas porque realizam operações diferentes); ou que quando os agrónomos desenvolvem novas variedades de milho, estão mais preocupados com a resistência da planta às doenças do que com as dificuldades de pilar a mão o grão que daí resulta. Enfim... Não vamos a ficar lamentando o que não aconteceu. Agora, temos uma nova moda, que de certeza vai pegar a sério desta vez. Trata-se da "participação" e do "ownership". Agora, os doadores insistem em que é muito importante assegurar a participação plena de todos os "stakeholders" na formulação dos programas de desenvolvimento, de forma a garantir que assumam o "ownership" da sua implementação. Vamos avançar por aí, sim Senhora! Poderá ser um bocado difícil, no início, consultar a opinião de três milhões de famílias camponesas dispersas pelo mato fora, antes de pôr a andar os programas de apoio urgente ao sector, mas esperamos chegar lá antes de que os doadores mudem outra vez de moda. Só nos resta um par de detalhes técnicos: encontrar uma boa tradução para "stakeholders" e "ownership". Não percebemos bem ainda se os primeiros são aqueles que "seguram a barra" ou aqueles que "seguram o bife" (steakholders). A nossa intuição feminina está-nos a alertar para a possibilidade de que se trate, de facto, de dois grupos diferenciados: aqueles para quem a barra vem pesada, por um lado, e aqueles que ficam com o bife, por outro lado. Quanto ao "ownership", está claríssimo que o projecto já é tão nosso, que até tomamos conta do termo tal qual. Nem vale a pena traduzir, temos pleno ownership dos nossos programas de desenvolvimento!
Até a próxima!
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