n° 99 | 7 de Abril 1997 | Maputo |
porque nos aceitamos tão passivas e mesmo assim nos amamos por Conceição Osório e Maria José Arthur Durante o mês de Agosto de 1996 teve lugar uma campanha intitulada "Todos contra a violência", coordenada pelo Fórum-Mulher, que envolveu 13 ONGs. Esta campanha marcou o início de um programa com a duração prevista de três anos, intervindo em quatro vertentes:
Não podemos consentir que se encerre o debate sobre a violência contra a mulher, sobretudo porque nos parece que as forças políticas dominantes descobriram a fórmula mágica para esterilizar e retirar o seu carácter subversivo: "existem alguns tipos horríveis com maus hábitos que batem nas desgraçadas das mulheres". Equacionada desta maneira a questão da violência, tomam-se duas posições:
A violência física sobre a mulher é o aspecto mais evidente da sua subalternidade, é o corolário de relações sociais que contêm já, em si mesmas, um grau extremo de violência. E enquanto a violência física se exerce sob o olhar mais ou menos complacente ou recriminatório da sociedade (dependente da auto-censura social), a segunda não é sequer questionada, incorporada que está num quotidiano não contestado. Porque se a violência significa o exercício da força sobre alguém ou alguma coisa, essa força nem sempre se manifesta de forma evidente e visível mas também de maneira subtil e simbólica. Quando, por exemplo, a vítima de violência não se reconhece como tal. E aí reside a força e a eficácia dos sistemas de valores e das representações da mulher. Porque a violência sobre a mulher tem o seu fundamento na diferença de sexo, constitui um elemento estruturante na construção da identidade feminina, independentemente da cultura, dos grupos sociais ou dos espaços. Quer dizer, uma mulher é mais do que um conjunto de atributos físicos, é acima de tudo um indivíduo que aprende, assimila e reproduz comportamentos, papéis e funções. É nessa maneira pré-estabelecida de estar no mundo que nós nos revemos, nos sentimos como mulheres e nos voltamos em busca de segurança. Na nossa identidade básica a violência está profundamente incorporada. Ela é recebida como componente da fatalidade ou da condição do seu sexo feminino. Assim, na busca das razões que levam uma parte da humanidade, as mulheres, a serem objecto de violência e a com ela "se conformarem" viramo-nos para a família, espaço de socialização determinante na elaboração das condutas e na definição do destino. É na família onde, desde que nascem, as crianças aprendem não apenas que são diferentes, conforme nasçam machos ou fêmeas, mas fundamentalmente que não são iguais em direitos. Mesmo quando se contesta a desigualdade e se proclama que os filhos são educados da mesma maneira, faz-se a diferença na distribuição e/ou nos valores que se transmitem, criam-se competências e habilidades específicas. Assim, o que nos parece "natural", como competência diferenciada de homens e de mulheres, é produto da construção social realizada na sociedade e na família que leva a que, pelo sexo, se estabeleçam relações desiguais, ou seja, relações de violência que se estruturam em torno de sistemas de valores. Por estes valores, a mulher aprende quais as funções que dela se espera (ser mãe e esposa), qual o espaço a que tem direito (e que pode reivindicar) e qual o seu lugar nas diferentes hierarquias que se vão organizando ao longo de toda a sua vida. O poder e a violência não só estão presentes nas relações sociais, eles são constitutivos das mesmas. Mas este tipo de violência, violência simbólica, só pode funcionar e reproduzir-se porque ela é aceite pela mulher. Nas representações que tem de si e dos outros ela vê-se sempre como dependente, afectiva ou materialmente, de um homem, ela vê-se sobretudo como mãe e esposa. No nosso país a norma tradicional encarrega-se de transmitir e de vigiar a desigualdade e de punir a igualdade: é a mulher que trabalha a terra mas não é ela que controla os seus recursos, é ela que, muitas vezes, sustenta a família mas não a pode chefiar, ela enviuva e não pode herdar, é ela que carrega o filho mas não pode decidir sobre o seu corpo. Quando ama ela não "possui" é "possuída". A mulher não casa, é casada. E isto, que nos parece uma maneira "natural", de se exprimirem situações ou relações, é de facto um modo de se comunicar a submissão. É esta forma de violência que se expressa nas práticas que revelam o modo como a identidade feminina se estrutura. O facto de, dificilmente a mulher trazer para a esfera pública, para os tribunais ou para a polícia a violência que sobre ela se abate, a vergonha que sente pelos maus tratos de que sofre (como se fosse culpada), a protecção que faz do agressor, não significa que a mulher "goste" ou não "se importe" de ser batida (como alguns nos querem fazer crer), mas que a sua personalidade é estruturada a partir de relações sociais profundamente desiguais.
É isso que significa ser mulher e é porque nos amamos e queremos recuperar a nossa dignidade que ousamos começar a questionar o inquestionável, o que no discurso masculino "sempre foi e há-de ser assim". Fazendo nossas as palavras do movimento feminista na América Latina, "quando te levantarem a mão que seja para acariciar-te".
|
voltar à home page da NoTMoC | voltar a Moçambique On-line |