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n° 76 7 de Abril 1996 Maputo

 
Edição especial dedicada ao tema da mulher moçambicana:

  1. O 7 DE ABRIL NA IMPRENSA
  2. O DIA 7 DE ABRIL E AS FLORES DA HIPOCRISIA
  3. SENHORES DO SEU NARIZ: AMOR, PODER E VIOLÊNCIA
  4. O ABORTO E O DIREITO DE CONTROLAR O PRÓPRIO CORPO
  5. GÉNERO E RIQUEZA NO MOÇAMBIQUE RURAL


 4.  O ABORTO E O DIREITO DE CONTROLAR O SEU PRÓPRIO CORPO (*)
     por Ana Carla Granja
     Médica (Ginecologia/Obstetrícia)
     Hospital Central do Maputo

Em Moçambique, no âmbito dos valores culturais tradicionais o estatuto da mulher depende do casamento e da sua capacidade de procriação. Um grande valor é atribuído à criança, e a fertilidade é ainda um requerimento necessário para a confirmação da sua condição de mulher e constitui motivo de orgulho para a família do marido que pagou a compensação matrimonial, o lobolo, pois deste modo a frequência do grupo está assegurada.

No entanto a expressão da capacidade reprodutiva da mulher, ou seja a gravidez e o parto, assumida voluntariamente ou não, podem constituir um perigoso desafio a sua própria sobrevivência. De facto o risco de vida de uma mulher em África falecer por causas relacionadas com a gravidez e/ou parto é frequentemente superior a 1 em 20, um risco centenas de vezes superior ao risco correspondente numa mulher dum país desenvolvido. Estima-se em 500,000 o número de mulheres que anualmente falecem de complicações da gravidez, aborto e parto, nos países em desenvolvimento.

As principais causas desta tragédia são a hemorragia obstétrica, a infecção puerperal, as complicações do aborto, as doenças hipertensivas da gravidez e outras doenças, nomeadamente a malária, anemia e outras, às quais a mulher é mais susceptível durante a gravidez. O aborto e suas complicações é em muitos destes países a segunda maior causa de morte (14 % de todas as mortes maternas), e calcula-se em 70.000 o número anual de mortes, mas outras estatísticas apontam até 200.000 por ano para a dimensão do problema. Não existe maneira de saber com exactidão qual das estimativas se aproxima da verdade porque o aborto induzido é ilegal na maioria dos países e, como resultado, as mortes por aborto não são denominadas como tal ou os falecimentos ocorrem fora das estruturas hospitalares, sendo frequentemente sub-notificadas.

Em Moçambique existem poucos dados publicados sobre a mortalidade materna, somente alguns dados hospitalares e outros colhidos por estimativas estatísticas. De acordo com os dados estatísticos, uma em cada 16 mulheres moçambicanas em idade reprodutiva morre por causas maternas. Dentre as causas mencionadas, o aborto é visto como contribuindo com 9% das causas de morte materna intra-hospitalar. Como já referimos anteriormente, estes dados devem ser vistos como a ponta de um icebergue, pois muitas mulheres falecem fora do hospital, enquanto que para outras a morte decorre de complicações resultantes do aborto e não são registadas como tal devido ao estigma social, e aos aspectos legais prevalecentes actualmente no País.

Com efeito, as disposições legais sobre o aborto no nosso País, contidas no Código Penal em vigor, que vem ainda do período colonial, referem explicitamente no artigo 358, "aquele que, de propósito, fizer abortar uma mulher pejada, empregando para este fim violência ou bebidas, ou medicamentos, ou qualquer outro meio, se o crime for cometido sem o consentimento da mulher, será condenado na pena de prisão maior de dois a oito anos."
Parágrafo 2 - "Será punida com a mesma pena a mulher que consentir e fizer uso dos meios subministrados, ou que voluntariamente procurar o aborto a si mesma, seguindo-se efectivamente o aborto".

As estratégias para combater as mortes por aborto, consistem basicamente em: prevenir a gravidez não desejada, impedir o aborto em condições de perigo de saúde para a mulher, promover a legalização do aborto e tratar as complicações.

Prevenir a gravidez não desejada
Os programas de planeamento familiar dispõem hoje em dia de uma variada gama de diferentes tipos de anticonceptivos eficazes que previnem a gravidez. Seria todavia um erro pensar que mesmo o melhor programa de planeamento familiar reduziria por completo a procura de aborto induzido. Há várias razões para isto; a primeira é a de que qualquer método anticonceptivo tem uma taxa de falhas ainda que muito pequena para alguns, pelo que aplicado a um grande número de utilizadoras o problema da gravidez não desejada continuaria a existir.

Mesmo usando um método correctamente ao longo de vários anos, uma mulher pode experimentar pelo menos uma vez o facto de ter engravidado sem o desejar. Devido a falta de acesso a informação e educação, numerosas mulheres não conhecem o planeamento familiar, ou conhecendo-o não o usam. As razões da falta de utilização de meios de planeamento familiar prendem-se com factores sociais, económicos e culturais, interligados entre si numa complexa malha que na prática torna a mulher vulnerável, no sentido em que não pode ou não dispõe de meios para controlar a sua capacidade reprodutiva. Assim, em várias fases da sua vida a mulher pode achar inconveniente o uso de anticonceptivos, difíceis de usar, de obter, ou muito caros.

A gravidez não desejada pode também ocorrer quando o parceiro masculino é hostil e recusa o planeamento familiar. Por vezes o pessoal das clínicas de planeamento familiar é pouco colaborativo para com mulheres não casadas, em particular com as adolescentes. Para alguns métodos como a laqueação exige-se o consentimento por escrito do marido.

Em numerosas ocasiões as mulheres não são livres de decidir se querem ou não ter relações sexuais. É exemplo disso a coerção sexual sob as formas mais subtis como a sedução no local de trabalho, escolas, e mesmo sob a forma de tradições culturalmente assumidas como válidas, tal como o caso do facto de a viúva na sociedade tradicional para continuar na família do marido aceitar ter relações sexuais com um homem da família. Sem falar no incesto ou na violação, frequentemente não denunciadas, pelo receio de represálias, ostracismo familiar ou social.

Um inquérito abrangendo 6115 mulheres em idade reprodutiva, na cidade capital de Maputo, onde o número de médicos e pessoal de saúde por habitante é o maior do País, revelou que embora 73% das mulheres tenham ouvido falar de planeamento familiar, 70% não o utilizam. Por outro lado, entre a mulher que "quer os filhos que já tem" (sic), apenas 36% usa o Planeamento familiar, embora 78% o conheça. As mulheres do Distrito Urbano nº 1 com melhores condições de vida (Bairros Polana, Sommerschield, Central Malhangalene e Alto-Mãe) têm uma diferença significativa na utilização de P.F.: 39% versus 26%, em relação às dos outros Distritos Urbanos da cidade.

As mulheres analfabetas utilizam menos o Planeamento Familiar (22%) que as escolarizadas (31%), o que realça bem de que maneira os factores socio-económicos influenciam a capacidade de a mulher controlar o seu potencial reprodutivo. Entre outros factores que determinam a utilização da tecnologia de contracepção disponível no Sistema Nacional de Saúde pelas utentes inclui-se a ocasional ruptura de stocks de determinado tipo de método, Centro de Saúde longe ou de difícil acesso, longo tempo de espera para as consultas e a qualidade de atendimento da parte do pessoal de Saúde.

Impedir o aborto provocado em condições de perigo de saúde para a mulher
Esta "solução" tem sido imposta por numerosas sociedades através de sanções sociais, religiosas e legais de modo a impedir as mulheres de terem acesso ao aborto. Tais medidas, todavia, tem sido aparentemente ineficazes em impedir as mulheres de provocarem o aborto, ou mesmo deste ser fornecido por trabalhadores de saúde ou "curiosas", por vias ilegais. Nos países onde o aborto é ilegal, a incidência deste é virtualmente impossível de se determinar. Todavia ele constitui um grande problema de saúde, mesmo em sociedades africanas onde "vulgarmente" se diz que as mulheres querem tantos filhos quantos Deus enviar.

No Hospital Central de Maputo, 14 163 mulheres foram atendidas na urgência de Ginecologia durante o ano de 1994. Uma elevada percentagem destas urgências são tratamento de ameaça de aborto ou de aborto incompleto e suas complicações, não sendo raro o aparecimento de casos de aborto provocado com permanganato de potássio, manipulação do colo do útero em condições não higiénicas com paus e outros objectos perfurantes, que provocam hemorragia e infecções graves resultantes do trauma, com graves consequências imediatas para a saúde da mulher e afectando o seu futuro potencial reprodutivo.

Cerca de dois terços dos casos de infertilidade em África são devidos a infecções pélvicas com oclusão das trompas. Mesmo nas melhores condições de "aborto legal" a doença inflamatória pélvica ocorre em cerca de 0 a 13 % dos casos.

Legalizar o aborto
A legalização do aborto é vista internacionalmente como uma das razões para a diminuição drástica da mortalidade materna por complicações do aborto. Todavia, embora a legalização ajude a diminuir as mortes devido ao aborto ela não e necessária nem suficiente para melhorar o acesso a serviços de aborto em condições de segurança para a saúde da mulher.

No nosso País desde há vários anos que vários Hospitais liberalizaram o acesso à interrupção voluntária da gravidez (I.V.G.) dentro das estruturas de Saúde, muito embora a legislação sobre o assunto se mantenha a mesma. Para ter acesso a uma I.V.G. é necessário no entanto uma série de condicionalismos de carácter económico e social, bem como requisitos clínicos.

A candidata deverá fazer uma ecografia para datação da idade gestacional, uma análise ao sangue para determinação da hemoglobina, um pedido em papel endereçado ao Director do Hospital ou Departamento de Ginecologia e Obstetrícia e finalmente, caso seja aceite, deverá pagar o acto médico. O total das despesas varia entre 150 a 200 mil meticais, como mínimo. [O equivalente ao salário mínimo nacional, ou USD 15-20].

Certas mulheres consideram embaraçoso ter de fazer um pedido por escrito para realizar um acto médico desta natureza, pois algumas podem ter restrições de carácter social, serem solteiras, adolescentes, viúvas ou por outros motivos considerarem que a confidencialidade do seu problema será posta em causa.

Outras carecem de informação e educação necessárias para utilizarem estes serviços ou eles estão longe do seu alcance pois são prestados normalmente dentro de Hospitais Centrais e Gerais. Outras ainda não possuem o dinheiro suficiente para pagarem todas as despesas decorrentes do acto em si, mais os medicamentos que forem necessários e eventuais consultas que necessitem para controle ou tratamento de complicações.

Por todas estas razões o acesso a uma I.V.G. "legal" está ainda restrito a determinadas camadas de população feminina urbana com facilidades socio-económicas, e mesmo esta camada beneficiada não possui o controle do acto em si, pois em alguns Hospitais a mulher deve submeter-se aos métodos utilizados e ao pessoal destacado para executar o acto médico, sem possibilidade de atendimento personalizado.

Tratamento das complicações do aborto
Devido às sanções morais, culturais, religiosas e legais que rodeiam a problemática do aborto, a maioria das mulheres que recorrem ao mesmo, chegam aos cuidados de saúde tarde com complicações como hemorragia e anemia, infecção que pode chegar rapidamente ao estádio de peritonite e septicemia. A consequência é uma elevada morbilidade por aborto (necessidade de intervenção cirúrgica com ou sem remoção do útero por presença de infecções pélvicas que mesmo tratadas levam frequentemente à esterilidade).

Estas complicações exigem cuidados intensivos para reposição de plasma e sangue e administração de antibióticos e soro, bem como facilidades cirúrgicas e de pessoal devidamente especializado, os quais são inexistentes ou de insuficiente qualidade em muitas Unidades Sanitárias periféricas e mesmo em alguns Hospitais Gerais e Centrais. Por outro lado existe uma demora na prestação de cuidados adequados a este tipo de pacientes devido à sobrecarga de trabalho nos serviços de urgência dos Hospitais do Estado, falta de recursos humanos, falta de medicamentos, necessidade de pagamento dos cuidados de saúde em alguns hospitais privados ou estatais com cuidados privados em simultâneo.

Tudo isto leva a que a mulher apenas recorra aos cuidados de saúde quando verifica que existem complicações e mesmo o facto de ela recorrer aos mesmos não significa que os seus problemas sejam imediatamente resolvidos. Em alguns casos o medo de sanções familiares ou ostracismo social é tal, que a mulher com uma gravidez não desejada recorre ao suicídio como acto de desespero nos casos em que o acesso ao aborto é restrito ou inexistente.

Com efeito, embora a reprodução humana diga respeito a dois, a factura das suas consequências é quase sempre comportada unicamente pela mulher. De acordo com a dupla moralidade existente na nossa sociedade, as mulheres ficam sós com a responsabilidade de assumir ou não a gravidez, e com as consequências físicas e psíquicas que advêm da sua respectiva decisão, quer seja a de a continuar ou de a interromper em condições perigosas para a sua saúde.

É por isso que a liderança da luta por assumir a problemática do aborto como algo a ser discutido amplamente e a ser colocado sob o ponto de vista legal, dentro do contexto dos direitos reprodutivos da mulher, cabe ao sexo feminino, através do fazer ouvir a sua voz nas organizações governamentais e não-governamentais, associações e redes de comunicação no contexto de uma luta global.

Cento e trinta países da Comunidade Internacional, através da sua Convenção no âmbito dos direitos humanos, reconheceram à mulher "o direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o seu espaçamento, e o direito à informação, educação e aos meios que as capacite de exercer esses direitos". Mas para além das boas intenções políticas, cabe a nós mulheres de todo o Mundo e Moçambicanas em particular de fazer valer estes direitos na prática do nosso dia a dia.

Viva o Dia da Mulher Moçambicana.

(*) Nota: Este artigo vinha acompanhado duma rica bibliografia que cortámos por razões de espaço.
 


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